A Catedral do Mar e as Mulheres Excluídas
Mônica Clemente (Manika)
Há
mulheres excluídas em sua história de vida?
Às vezes, o
passo decisivo e essencial para solução de uma questão pessoal “insolúvel”, pode
ser o reconhecimento de uma pessoa ou situação excluída na família há gerações.
A partir dos personagens femininos do livro A Catedral do Mar vamos
mostrar algumas das situações que excluem as mulheres até hoje. Abaixo de cada
personagem citamos seus dramas no romance e os enredos reais que elas podem
representar em nossa vida.
Quero ficar no teu corpo, Feito
tatuagem, Que é para ter Coragem
As exclusões
aparecem nas constelações familiares em diversos movimentos. Um deles é esquecer de uma pessoa por trás de um símbolo religioso. Não é uma regra, nem pode
ser, mas uma alegoria, como uma tatuagem, por exemplo, pode representar um
parente ou pessoa renegada que queremos incluir com amor, na própria pele. “Quero ficar no teu corpo, Feito tatuagem, Que
é pra te dar coragem, Pra seguir viagem,
Quando a noite vem” (Tatuagem[i]
– Chico Buarque). Ao reconhecermos o que foi negado ganhamos ânimo de
ultrapassar uma dor inexplicável, um obstáculo “intransponível” como intuem os
artistas.
Os Símbolos Religiosos Femininos
Em alguns
movimentos sistêmicos, o reconhecimento da pessoa por trás do nome de batismo,
homenageando uma santa, apazígua toda uma família. Este
nome pode ter sido dado em tributo a uma deidade, ou por alguma promessa de
vida. Ou ao contrário, se há algum desprezo pela crença dos outros (como
rejeição de santas como emblema de devoção). Se a constelação nos conduzir para
uma mulher por trás da Santa homenageada, há uma ou várias mulheres precisando ser
vistas e reverenciadas na história familiar. Mas não é só isso, como veremos
mais abaixo.
As
Mulheres no Livro A
Catedral do Mar (este romance virou série na Netflix)
No livro A
Catedral do Mar, do escritor espanhol Ildefonso Falcones, há uma história
subjacente de mulheres excluídas. Na linha de frente do romance somos
capturados pela luta e sofrimentos dos camponeses na época medieval, século XIV, tentando sua liberdade em Barcelona. Por meio
dos fascinantes personagens masculinos, Arnau e seu pai Bernart Estanyol, saímos
de um mundo arbitrário, imposto pelos senhores dos feudos, para outro com mais
possibilidades, mas não menos desafiante.
Nas
entrelinhas do enredo, no entanto, diversas mulheres são submetidas a terríveis
condições, se aliando à luta dos protagonistas, sem, contudo, serem reconhecidas
como gente, mas sutilmente como a Virgem Maria. Talvez, em cada pedra carregada
para a construção da Igreja do povo, a via crucies dos operários erguendo pedra
a pedra um monumento à Virgem, tenha um lugar para estas mulheres.
É verdade que duas personagens são grandes inimigas dos "mocinhos", mas não a causa das perseguições
que sofreram, como parece a princípio. Elas também tinham pouco ou nenhum
recurso para serem livres naquela época, mesmo em posição mais privilegiada.
Neste trajeto, as mulheres deixam de
ser vistas como mãe para virarem prostitutas, deixam de ser o amor de um homem
e passam a ser propriedade de outro, deixam de ter escolhas para servirem aos
interesses comerciais e de poder dos outros. E passam de protegida para a culpada dos
processos da inquisição. Vamos ver, ao longo na narrativa, que os estigmatizados se tornam invisíveis
ou símbolos distantes, que guardam a história de uma pessoa de carne e osso que
precisa ser olhada e incluída.
O que estas personagens podem
revelar sobre nós mesmos?
Todos
aqueles criminalizados, assassinados, menosprezados e “culpados”, na maioria
das vezes, só encontram lugar em algo sublime, contrariando nossos julgamentos, como uma imagem santa ou em uma
religião. Oramos ou meditamos com estas figuras, sem nos darmos conta que,
talvez, em alguns casos, elas guardam alguém para ser amado. Em determinadas
dinâmicas das constelações familiares damos um passo essencial quando integramos
os excluídos (desumanizados) ao sistema familiar. Não com pena, mas reverência
pela coragem que tiveram ao enfrentar seus destinos tão desafiadores.
As noções arquetípicas de Lilith, Eva e a Serpente do velho e novo testamento estão, também, representadas neste romance premiado, mas não vou falar sobre isso
aqui, embora seja bem claro para quem conhece estes arquétipos.
As
Mulheres em Catedral do Mar e em
Nossa Vida (Tem spoiler).
Ao final de
cada personagem apresentada são feitas perguntas, em verde, para lembrarmos de
alguém de carne e osso que pode estar excluída em nossa família direta ou ancestral.
1) Francesca Esteve – esposa de
Bernart Estanyol e mãe de Arnau.
Bernart Estanyol era um bom
homem de coração honrado. Abriu mão de sua herança para que a irmã Guiamona pudesse pagar o 1) dote
do casamento e 2) sustentar o futuro marido na cidade de Barcelona.
Mais tarde
ele conhece a camponesa Francesca Esteve por intermédio do pai da moça que paga o dote dela. Os dois se
apaixonam e se casam. No dia do
casamento ela é estuprada pelo dono do feudo Llorenç de Bellera, dono da terra onde a família morava. Só a mãe dela tenta, ostensivamente, defende-la, embora o noivo tenha tentado o que podia.
Bernart é
forçado a ter relações com Francesca logo em seguida, mesmo ensanguentada e
ferida. O camponês se vê forçado a ter relações ou ela seria estuprada por um
dos cavaleiros do senhor feudal. A justificativa era 1) os senhores feudais
podiam, por lei, tirar a virgindade de quem morasse em suas terras; 2) e para
que não ficasse claro que o filho gerado era do dono do feudo, outro homem
devia tomar a mulher logo em seguida.
- 1 Ainda hoje
há pessoas que acham que podem violar uma mulher?
- 2 Um marido
pode cometer estupro também?
Desta união violenta nasce Arnau com a marca dos Estanyol no canto do olho. Ele é filho legítimo de
Bernart. Isto questiona a virilidade do senhor feudal que passa a perseguir
Francesca, Bernart e Arnau ainda bebê.
Francesca é forçada a ser ama de
leite do filho do Senhor Feudal que a estuprou. Arnau, ainda bebê, é raptado junto com ela, embora ela não possa mais vê-lo. Bernart descobre onde ele está e salva o filho da morte, porque a mãe não podia chegar até seu bebê para
amamenta-lo, já que era estuprada no caminho. Mais tarde, por todos estes motivos, ela é desprezada e vira prostituta.
Bernart foge
para a cidade com seu bebê, vivendo escondidos. Ele começa a trabalhar para o marido
de Guiomana, Grao Puig, seu cunhado, até conseguir ficar 1 ano e 1 dia em Barcelona, quando teria permissão legal de
ficar na cidade. Como Bernart matou, sem querer, um homem para salvar o seu
filho, ele é procurado para ser enforcado. Isso faz com que ele fique trabalhando
para o cunhado durante anos, sendo Arnau criado na casa grande, junto com os
primos, na esperança de ter outro destino.
Em
sua família, alguma mulher foi estuprada e considerada culpada pelo crime que
sofreu? Esta história veio à tona ou não se pode falar sobre isso com
ninguém? Alguma mulher trabalhou como prostituta
para se manter viva ou para manter seus filhos vivos? Alguém a jugou por isso? Alguém a
agradeceu?
2) A Virgem Maria como símbolo da mulher
excluída
“De que me serve uma mãe que mora no
céu?”
Quando o
pré-adolescente Arnau descobre que sua mãe não está mais viva, ao menos na
versão que o pai contou, este substitui a presença dela pela imagem da Virgem
Maria. (As dores, geralmente, viram segredos na família, excluindo ainda mais aquele que sofreu). O menino pensa, “de que serve uma mãe que mora no Céu? ”
Neste livro ela
serve para manter a memória das mulheres excluídas. E na vida real, em algumas situações, também.
A partir daí
a Virgem passa a ser uma das principais personagens do romance. Desde a
vocação[ii]
de Arnau, que vem da sua devoção à santa, até a sua ligação com o padre que
encabeça a construção da “igreja do povo, Santa Maria do Mar”, na Catalunha, passando
pela a amizade com Joan e a construção da Igreja. Com a Virgem consolando os personagens mais sofridos do livro.
3) A prostituta: polaridade excluída
Ao longo do romance, as mulheres mais rejeitadas se tornam prostitutas. E, para proteger a
quem amam, negam a sua existência. Francesca, prostituta e acusada de bruxaria,
nega o parentesco com Arnau para que ele não fosse condenado pela inquisição.
Mais tarde,
quase ao final do épico, vemos a Virgem Maria ser alçada ao topo da Catedral do
Mar, como se todo o caminho do protagonista, agora com mais de sessenta anos,
fosse a busca de um lugar de honra para a sua mãe “morta”. E talvez para todas as mulheres renegadas.
Os dois arquétipos
da Santa e da Prostituta se polarizam não só neste livro, mas no intinerário intelectual ocidental e, portanto, na vida real. Um
destes polos, ao menos na Igreja Católica, está em um pedestal imaculado, inalcançável. O outro está nas
sombras da invisibilidade de todas as chagas negadas dos mortais. Entre um e outro há uma pessoa de carne e
osso que não pode contar a sua história para poder salvar os descendentes ou
não ser julgada. Ou porque é excluída. Ou porque uma mulher "não pode" ser inteira: ter desejos sexuais e ser respeitada ao mesmo tempo, por exemplo.
4) Guiomana – tia de Arnau e irmã de Bernart
Guiomana é
como a segunda mãe para Arnau. Ela morre de tristeza por perder Guiamón, seu
filho mais novo. Arnau ainda jovem é acusado de ser o culpado pela
morte do primo. Ela morre sabendo que o sobrinho é inocente, embora não possa
mais protege-lo.
Na
sua família há uma tia que cuidou do filho/a de um irmão ou irmã, precocemente
morto/a? Ela não foi a mãe perfeita, mas manteve este filho vivo com todo o seu
esforço e ainda não foi reconhecida pelos seus serviços à vida? Há alguma uma tutora
para ser honrada?
5) Habiba - a ama que ajuda a criar Arnau e os
filhos de Guiomana
Habiba é muito cuidadosa e amorosa
com todos os filhos e sobrinho de Guiomana e Grau Puig. Margarida, a filha mais velha do casal
acusa Arnau, criança, de ser o culpado deles terem fugido para o lado
de fora da casa. O filho mais novo do casal morre por conta disso. Puig culpa a ama pelo ocorrido. Bernart
tenta protege-la, mas o patrão açoita a escrava, estendida com braços abertos e
nua, como Jesus na Cruz, até sua morte na frente de todos, inclusive de Arnau.
É a terceira figura materna que
tem um destino difícil na vida do pequeno protagonista.
Em
sua história ancestral houve mulheres que amamentaram filhos que não eram seus?
Amas ou empregadas que cuidaram com amor profundo dos filhos dos patrões ou
senhoras de escravos? Há alguém para agradecer que nunca foi visto e, ao
contrário, foi punido?
6) Joana – a mãe de Joan, o melhor amigo de
Arnau
Joan, o melhor amigo de Arnau, depois
irmão adotivo dele, nunca viu o rosto da mãe. Todo dia ele vai até um casebre pequeno com uma pequena janela de grade, por onde sua mãe Joana acaricia a sua cabeça.
(A mulher, na época, além
de não poder escolher com quem casar, se tivesse um relacionamento extraconjugal poderia ser trancafiada pelo marido, com respaldo da lei.)
A ecologista
Lara Moutinho da Costa falou sobre esta parte do livro.
Estávamos eu, ela e o Jun Shimada conversando sobre este filme e as
constelações, quando ela nos lembrou sobre a
tromba da mãe do Dumbo, acariciando e embalando o seu filhote. A elefanta estava
encarcerada, sem acesso ao pequeno, porque se revoltou contra a prisão e maus
tratos do circo. Uma das fotos do desenho animado Dumbo (a seguir) é bem parecida com a foto acima
Se a sua história preferida da
infância é a do Dumbo, talvez uma mulher da sua família ancestral tenha sido
punida ou trancafiada em casa, pelo simples fato de querer ser livre para
escolher os seus parceiros. Ou alguma esposa teve um marido muito ciumento que a
castigou muito. Pode, também, ser um pai que fez alienação parental falando mal
da mãe para os filhos. A alienação é uma prisão invisível que mantém as
crianças afastadas do pai ou mãe esculachados.
A
infidelidade (feminina) na sua família é julgada e punida? Com exclusão? Você
condenou a sua mãe por ter sido infiel ao seu pai? Ou ao seu pai pela infidelidade da sua mãe? Há algum homem brutal e ciumento que encarcerou, mesmo que pelo
medo, sua esposa em casa? Há alguma moça que casou com quem não queria por
imposição paterna? Um pai fez alienação parental justificando a proibição de
acessar a mãe por conta da infidelidade dela (ou ao contrário)?
Dumbo - desenho de Wat Disney
Na placa da prisão da mãe de Dumbo está escrito PERIGO em inglês.
7) Margarida – prima de Arnau e inimiga dele.
Uma das vilãs
do livro é uma menina com menos de 14 anos. Não é a crueldade dos Feudos, não é
a crueldade da Inquisição, não é a barbaridade dos homens sobre as mulheres que fazem dezenas deles carregarem pedras para construir a Igreja do Povo, tendo
como motivação o amor à mãe excluída projetado na Virgem Maria. É uma
adolescente. As traições e perfídias neste livro são quase todas femininas,
como Lilith e a Serpente no velho e novo testamento. Elas, as mulheres más,
fazem o jovem Arnau mais forte em direção ao seu sonho de erguer a igreja e se
tornar livre.
Elas
representam um velho padrão de culpar as mulheres pelo mal no mundo. Tudo bem,
há situações nas quais precisamos colocar limites em alguns comportamentos
abusivos de uma mulher. Mas não é uma regra.
Sua
mãe é uma bruxa? Você tem uma mãe tóxica? Ah?! A sua irmã que é um monstro? É
mesmo? Quem fez você demonizar assim a sua mãe ou as mulheres? Elas mesmas? Entendo. Sinto muito! Talvez seja hora de ser uma boa mãe para você! Assumir o seu caminho sem culpar ela (s) por tudo o que deu errado com você. Se não consegue, tome o floral WILLOW + WALNUT e busca um bom psicanalista para sair do domínio
dela. Peça ajuda! Sozinho/a é mais difícil.
8) Aledis – o Primeiro amor de Arnau Adulto
A bela
Aledis é o primeiro e grande amor de Arnau. Ela é forçada pelo pai a casar com
um homem rico e velho. Como ela inicia um romance clandestino com Arnau é
condenada a viver como a mãe de Joan, a Joana, presa em um cubículo. Sua irmã Alesta a salva,
mas seu destino é virar prostituta e, futuramente, junto com a mãe de Arnau,
negar o seu amor por ele para que o protagonista seja feliz.
Há
uma mulher que foi o primeiro amor de um pai, avô ou bisavô em sua família? Ela
é respeitada ou uma piada na família? Acusam-na de atrocidades, sem saber de
fato da versão dela da história? Há alguma mulher casada à força em sua família que
tinha um outro grande amor? Há alguma mulher que fez algo muito bom para a
família, mas debocham ou falam mal dela? Seu marido teve um primeiro grande amor? A respeitam?
9) María - 1ª Esposa de Arnau – os dois são forçados
a casar.
Arnau também
é forçado a casar e não consegue se entregar para a boa esposa María, que o ama
profundamente. Ele é amante de Aledis. Isto causa uma culpa mortal nele e uma dor
imensa na esposa, que acaba morrendo durante a peste negra.
Há algum casamento forçado em sua família? Há amores não correspondidos em um casamento,
embora houvesse muito respeito? Há uma primeira esposa morta antes do seu pai, avô
ou bisavô ter encontrado a sua mãe, avó ou bisavó? Ou a sua mãe, avó ou bisavó é
a primeira esposa morta que ninguém mais se lembra? Houve vontade de que um dos
conjunges morresse para se livrar de um casamento infeliz? Há uma culpa em nós que nos cega de ver as vítimas dos nossos atos, fazendo a gente sentir pena de nós mesmos, como Arnau nesta fase do romance?
10) Raquel - a menina Judia que Arnau salvou
As crianças Raquel
e seu irmão Hasdai são salvos por Arnau (adulto) em uma perseguição contra os
judeus. Ele se torna amigo do pai das crianças. Esta amizade dura a vida toda,
o que leva à inquisição a perguntar se a Raquel, já adulta, e Arnau têm
relações carnais. Se sim, ele será condenado porque ela, por conta de sua
religião, é considerada impura.
Esta
personagem e os dramas em relação a ela nos remetem ao que Bert Hellinger chama
de Comunidade de Destino: Os seus ancestrais têm alguma ligação com outro grupo
de pessoas por ele ter sido muito importante para a manutenção da vida da sua
família ou vice-versa? Ou causou danos a uma outra família (ter escravos, por
exemplo)? Ou sua família foi prejudicada por alguém (roubo de sócios)?
Uma
mulher (da sua ou de outra família) foi considerada indigna de casar com um homem
por causa de classe, raça, credo ou outro preconceito? E vice-versa?
11) Elionor - 2ª Esposa de Arnau – sua Grande
Inimiga
(Lilith
queria ficar por cima, então foi expulsa. Criaram a Eva, mais obediente.)
Mais uma
mulher é a grande inimiga de Arnau. Ela e ele imploraram para não se casarem,
mas os interesses comerciais e bélicos dos poderosos impuseram a união. Toda
maldade que a megera faz é para se libertar daquela aliança humilhante para
ela. Falsa, interesseira, raivosa e traiçoeira, encontra seu destino nas chamas
do inferno.
Llorenç, que estuprou a Francesca, morre de velhice... a vida é injusta, eu sei, mas as
mulheres são queimadas mesmo. Será que Elionor não tem um lugar no coração da
Virgem Maria, como o cangaceiro Severino teve em Alto da Compadecida[iii]?
Tem alguma mulher desobediente que foi expulsa de casa? Tem alguma
namorada, esposa, noiva que seu pai, avô, bisavô deu um fora porque ela era forte,
livre, poderosa? Tem alguma mulher bem má em sua família? Ela tem um lugar no
coração da Virgem? E no seu coração? Nem se você soubesse os antecedentes? Ter um lugar no coração não é perdão, é dar o lugar de pertencimento a quem é excluído.
12) Mar – a "filha adotiva de Arnau” que se
apaixona por ele
Arnau decide
ser o protetor da pequena moradora de rua, a Mar, quem tem a Virgem Maria como
sua mãe adotiva também. Irmãos de sangue em seu destino de orfandade e
separados pela diferença de idade e status social, constroem uma relação de
amor profundo, que com o tempo catalisa todos os fantasmas de Arnau.
A princípio o carisma daquela menina
valente e a bondade do atual homem de negócios Arnau fortalecem os laços entre eles. Nas
entrelinhas vemos que se dependesse de Arnau, ela não sofreria como todas as
mulheres em sua vida sofreram. Amoroso, corajoso, inteligente e
forte, o tutor se dedica à Mar para que ela tenha um futuro melhor. A moça cresce e
começa a deseja-lo como homem, sem ter coragem de romper a barreira posta por
ele.
Graças à vingança, ganância, ciúmes
e inveja de Margarida e Elionor, junto com as distorções religiosas do agora padre
Joan, melhor amigo de Arnau, ela é forçada a casar com o homem que a estupra.
Por lei, naqueles tempos, se um homem pegasse uma mulher a força era enforcado, mas
se casasse com ela, era absolvido. Quanto à mulher, nada era oferecido além de um casamento com o seu agressor ou a prostuição.
Arnau não
consegue defende-la. "Exatamente" como seu pai não conseguiu defender Francesca. Além de estar
casado com Elionor, que tramou o estupro junto com o padre Joan, se for contra o
casamento, pensa que empurrará Mar para um destino terrível, como aconteceu com sua mãe e todas as mulheres da época.
Todo o drama das mulheres na vida
de Arnau se condensam neste dilema moral que a lei da época lhes impunha. Ele, de
repente, é o algoz de sua mãe em todas as decisões que tomar.
1. Se escolher
libertar a jovem daquele casamento, ela será marcada por toda a vida como uma
mulher sem valor e seu destino será a prostituição.
2. Se fizer ela
casar com aquele homem mais velho, como aconteceu com Aledis, seu primeiro
amor, ou com a mãe de Joan, um dos responsáveis por Mar estar nesta situação
diabólica, ele se tornará como todos aqueles que maltrataram as mães excluídas
e o seu primeiro amor.
3. E se escolher dar a moça em casamento para o velho, que é o estuprador, sem saber,
impõe sobre Mar o destino de sua mãe, de ser estuprada sempre.
E aí entra o que o escritor
israelense Amos Oz fala sobre as gradações do mal. Com medo de causarmos mal,
não olhamos suas nuanças e nos mantemos distantes, com as mãos limpas. Mas se temos
coragem de olhar, e precisamos escolher, o menor mal deve ser o escolhido.
Um dos
males, como mostrará o final do romance (não vou contar), não era tão mal assim.
Há alguma mulher que
foi forçada a ter relações sexuais com o marido? Há mulheres estupradas
dentro ou fora do casamento? O Carisma (roupas, jeito, alegria) femininos foram
usados como justificativa para abusos? Você sabe que há gradações do mal? O que faz diante dele?
13. Maria, Mar, Mãe. A décima terceira
bruxa não é convidada para festa do rei.
Em todo este
épico catalão, o destino e os dotes das mulheres foram a causa motriz de cada
pedra que Bernart, Arnau, e a maioria dos personagens homens carregaram para conquista
da liberdade, ou para construir a Igreja do Povo, local onde todos podem fazer
sua reverência à Virgem Maria. Arnau encarna uma nova visão de mundo e um novo
homem. Uma nova masculinidade. Um mundo onde a mulher e o homem, com menos preconceitos,
têm mais liberdade e igualdade de direitos.
A sua mãe, sua primeira esposa María e seu futuro amor, Mar, encarnam 3 dos 4 arquétipos femininos que se cruzam criando um centro. O Quarto está sempre escondido, como a décima terceira bruxa que não cabe na mesa de doze lugares. Esta é a excluída. Ou o Mistério, onde todas as mulheres são abraçadas e acolhidas pela Virgem, mesmo que ainda não sejam vistas nem reconhecidas.
A sua mãe, sua primeira esposa María e seu futuro amor, Mar, encarnam 3 dos 4 arquétipos femininos que se cruzam criando um centro. O Quarto está sempre escondido, como a décima terceira bruxa que não cabe na mesa de doze lugares. Esta é a excluída. Ou o Mistério, onde todas as mulheres são abraçadas e acolhidas pela Virgem, mesmo que ainda não sejam vistas nem reconhecidas.
Quero ficar no teu corpo
Feito tatuagem
Que é pra te dar coragem
Pra seguir viagem
Quando a noite vem
E também pra me perpetuar
Em tua escrava
Que você pega, esfrega
Nega, mas não lava
Quero brincar no teu corpo
Feito bailarina
Que logo se alucina
Salta e te ilumina
Quando a noite vem
E nos músculos exaustos
Do teu braço
Repousar frouxa, murcha, farta,
Morta de cansaço
Quero pesar feito cruz
Nas tuas costas
Que te retalha em postas
Mas no fundo gostas
Quando a noite vem
Quero ser a cicatriz
Risonha e corrosiva
Marcada a frio
Ferro e fogo
Em carne viva
Corações de mãe, arpões
Sereias e serpentes
Que te rabiscam
O corpo todo
Mas não sentes (Tatuagem – Chico Buarque)
[iii]
Peça de Ariano Suassuna que virou um filmaço de Guel Arraes. Severino é um
cangaceiro cruel que consegue o perdão da Virgem quando se descobre os
antecedentes: seus pais pobres foram mortos, injustamente, pela polícia, bem na
sua frente.
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